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25 DE MAIO: Dia de (re)pensar ÁFRICA(S)

 
 
Que mundo é esse que proíbe os povos africanos
de chamar Deus na sua própria cultura,
só para ouvir a palavra Deus, nas línguas estrangeiras? 
Por quem vibram os tambores do além?
(Paulina Chiziane e Rasta Pita)
 

A 25 de Maio de cada ano, celebra-se o dia de África em alusão à criação, em 1963, da Organização da Unidade Africana (OUA), desde 2002, União Africana (UA), cuja finalidade é a de fortalecer a integração e o desenvolvimento socioeconômico dos países africanos. Há 57 anos celebramos esse dia, em que trinta e duas nações africanas se associaram para manter vivas as lutas pela liberdade do continente.

Celebrar... que rima com lembrar, que rima com pensar, mas que também rima com imaginar...

Imaginemos o que seria hoje de África, se uma diversidade de povos e suas culturas (línguas, espiritualidades, costumes, saberes e artes) não tivessem sido exterminados e usurpados, respectivamente, por colonizadores vorazes e impiedosos que, violentamente, se apropriaram e fragmentaram territórios que passaram a ser vistos apenas como fonte de espoliação e exploração de recursos naturais e humanos?

Imaginemos se grande parte do recurso que propiciou a riqueza da Europa, tivesse ficado em África, o que seria hoje dessa ficção europeia forjada na modernidade ocidental? 

Imaginemos se ao invés de uma invasão tivéssemos tido uma relação entre povos convivendo em equilíbrio, com respeito mútuo entre “os diferentes”?

Imaginemos se ao invés de uma “invasão truculenta e sanguinária”, as caravelas tivessem aportado “pacificamente” em África? Talvez não seria necessário nos dias de hoje que diversos governos de nações africanas exigissem a repatriação de obras de arte e artefatos culturais saqueados em tempos coloniais e que continuam a fundamentar narrativas da “grandeza” ocidental, reafirmando visões dicotômicas como natureza/África versus cultura/Europa; “selvagens”/África versus “civilizados”/Europa na construção e manutenção de uma memória “oficial” em  museus da França, Holanda, Portugal, Reino Unido, Bélgica, entre outros países ocidentais.

Portugal dos Pequenitos, 2011. Acervo Pessoal de Colaboradores.

Se, de fato, a história confirmasse que os colonizadores europeus apenas “descobriram novos mundos” desabitados e que na verdade o processo colonial não foi sinônimo de violação, “roubo, pilhagem, espoliação, trapaça e consentimento forçado” (Savoy e Sarr, 2018), talvez nos tempos atuais, os movimentos afrodescendentes em Portugal não precisassem denunciar a falácia da narrativa de um passado colonial glorioso expresso no projeto de um tal “Museu das Descobertas”, assim como inscrito numa série de monumentos que pululam os centros históricos das várias cidades do país.

Se o saque, a espoliação e a escravização de pessoas não tivessem sucedido e tornado-se constituintes das histórias dos continentes africano e europeu, prejudicando o primeiro e privilegiando o segundo,  talvez hoje nos levantássemos indignados com a existência de um lugar de memória chamado Portugal dos Pequenitos (1940), localizado em Coimbra, Portugal, que, após oitenta anos da sua construção, desperta-nos sentimentos de inquietação e revolta pelo total desrespeito e depreciação dos povos racializados e por re-vivificar o racismo presente num museu aberto ao público local e a turistas de vários países.

“Portugal dos Pequenitos” foi idealizado pelo político e médico Bissaya Barreto (1886-1974) como parte da “Exposição do Mundo Português (1940)”, em referência à “fundação do Estado Português (1140)” e à “restauração da independência (1640)”, durante a vigência do estado autoritário “salazarista” (1933-74). Barreto arquitetou o que denominava de “parque temático” e agregou, de um lado, a simplicidade da vida portuguesa com representações em miniaturas de vilas e cidades de várias regiões de Portugal, e de outro, expôs uma narrativa baseada no suposto heroísmo de homens envolvidos na invasão de outros continentes, incluindo o continente africano. Assim, forma-se uma imagem de Portugal de aquém e de além-mar, visando ser um espaço lúdico-pedagógico por meio da instituição de uma “portugalidade” que renova a ideia da singularidade de Portugal, associada à ideologia do luso-tropicalismo que apregoa ser o português um colonizador propenso a viver harmonicamente com outros povos e também uma homogeneização cultural que sobrevaloriza e reconhece, sobretudo, a cosmovisão europeia.

Se na década de 1940 tal espaço era exaltado pelos estados-novistas e ufanistas; no  tempo atual, este lugar de reafirmação de uma imaginário sobre África como unívoca e “incivilizada”, “exotizada” não só por transmitir visões desvirtuadas sobre a história e cultura de países africanos (reforçadas pelas estátuas de pessoas negras  desumanizadas, em situação de extrema subalternidade e obras deslocados do seu contexto original), continua a representar uma “história única” sobre o colonialismo, ocultando um processo complexo, multifacetado e fincado por contradições entre os diferentes sujeitos históricos envolvidos e implicados no colonialismo, marcado por violências, resistências e transformações. 

Este museu aberto e com monumentos fixos produz sentidos e uma permanente re-atualização da narrativa de superioridade do colonizador branco e um discurso de inferioridade dos povos e países africanos, posto que a cada passagem por esse lugar de memória, crianças e adultos visualizam representações estereotipadas de países africanos que tendem a ser solidificadas em sua memória; a cada visita de estudo ou atividade de lazer são reiterados imaginários ocidentais sobre o continente africano e seus habitantes, mantendo lógicas racistas iniciadas pela colonização, mantidas durante a ditadura e em constante re-atualização na contemporaneidade do regime democrático português.

Portugal dos Pequenitos, 2011. Acervo Pessoal de Colaboradores.

Representações que, infelizmente, também  rimam com invisibilizações…

E se no lugar das representações que temos hoje do continente africano como continente “exótico”, “bárbaro”, “primitivo”, “da fome”, “da pobreza”, “da corrupção”, da “inabilidade política”, tivéssemos representações que reconhecessem o conhecimento científico, espiritual, filosófico, tecnológico, linguístico e artístico da humanidade? Como ficariam então as representações do “eu, europeu”? Ruiria sem “o outro defeituoso” (Winter, 2015)?

Portugal dos Pequenitos, 2011. Acervo Pessoal de Colaboradores.

A (re)produção das narrativas que insistem em representar o continente africano como parte constitutiva do projeto de dominação colonial, representam uma forma de conhecimento e discurso intimamente ligada às estruturas e práticas de poder branco que prevalecem no mundo atual, desde a invasão do continente e que reproduzem cotidianamente racismo, visões e práticas eurocêntricas. 

Neste 25 de maio gostaríamos de imaginar o que teria ocorrido se as 32 lideranças representantes de estados africanos em Addis Abeba, Etiópia, em 1963, para assinarem a carta de fundação da OUA, tivessem, de fato, conseguido destruir um dos  piores legados deixados pelos europeus - a colonização das mentes - e tivessem levado a cabo a cosmovisão presente na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, elaborada pela OUA em 1981.

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos representa uma concepção enraizada na filosofia africana, rompendo com valores ocidentais da centralidade do indivíduo. O direito dos povos, assim como os deveres para com a comunidade, refletem essa ética de estar no mundo e descrevem o ser humano como "ser com os outros", ou “eu sou porque somos”. A compreensão africana da noção de direitos e deveres relaciona-se à tradição Ubuntu, “cuja visão de mundo ficou consagrada na máxima Zulu 'umuntu ngumuntu ngabantu' ou 'uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas'” (Ingange-wa-Ingange, 2010).

Como concluiu Ingange-wa-Ingange, essa visão de mundo e modo de vida africanos guia o conceito de deveres da Carta Africana, que inova ao romper com o individualismo e, também, ao reforçar a ideia de direitos que implica a todos uma relação com o outro, de solidariedade. Afinal, em Ubuntu, o indivíduo se torna real apenas em seus relacionamentos com os outros, em comunidade. Entretanto, a mentalidade colonial parece ainda pairar na atuação de grande parte dos governantes africanos, manifestada nos passos não dados da União Africana (UA) rumo à emancipação do continente. A “colonialidade do fazer político” reproduz-se no funcionamento da UA, que desde a sua fundação desviou-se do motor original da OUA (composta em grande parte por líderes revolucionários) e não conseguiu ir além da realização de conferências onde os seus líderes corruptos se limitam a intenções e gestos, facilitando o abismo entre aquilo que se idealizou como mundo desenvolvido e mundo subdesenvolvido, ou o que Kwame Nkrumah formulou como neocolonialismo.

Mulheres da tribo herero na Namíbia @DailyMail

Imaginemos se o passado colonial tivesse ficado para trás, talvez não teríamos espaço nos dias de hoje para a defesa de uma África “lusófona, francófona e anglófona”. Se a herança  da colonização não existisse, talvez hoje fosse possível construir um projeto emancipatório baseado em  identidades político-transnacionais  que não tivesse como centrais as línguas dos colonizadores e todas as implicações que advém das suas existências e permanências no continente africano.  

Se por um lado, o 25 de Maio rememora a história de luta por emancipação dos povos africanos, que por sua vez se confunde com a própria memória das lutas por libertação das populações negras nas diásporas, por outro, esse dia também relembra que o continente africano e a União Africana - enquanto utopia, projeto político e comunidade imaginada - necessitam “continuar a luta de libertação contra a pobreza das nossas mentes” (Chiziane e Pita, 2013, p. 25) para se tornarem reais. 

Existem múltiplos conhecimentos e saberes africanos e afrodiaspóricos que nos informam que o nosso caminho em direcção à autonomia e à emancipação passa pelo reforço dos diálogos e acções entre o continente e as suas diásporas; pela valorização das nossas ciências, espiritualidades, filosofias, tecnologias, línguas e artes; pelo reconhecimento das nossas ontologias (como a oratura de Pio Zirimo); pelas nossas correntes estéticas, éticas e políticas (como o afrofuturismo de Alondra Nelson); por uma abordagem autodeterminada sobre as relações de gênero desde uma perspectiva afrocentrada (como o mulherismo afrikana de Clenora Hudson-Weems e seus desdobramentos como as proposições de Nah Dove); pelas nossas ferramentas de análise crítica e económica (como a afrotopia de Felwine Sarr); e pelas nossas formas de pensar os territórios para além de estados-nação colonialmente impostos (como a ideia de mundo sem fronteiras de Achille Mbembe). O Núcleo Antirracista de Coimbra seguirá o compromisso de desmontar narrativas que desvalorizam as realidades e riquezas do continente africano, seguirá denunciando mecanismos de neocolonialismo que sustentam o genocídio negro no mundo até aos dias de hoje, e seguirá reavivando e celebrando o dia 25 de maio e esse legado valioso que nos une numa luta comum com espíritos, corpos e mentes livres.
 

Referências bibliográficas

  • Chiziane e Pita (2013). Por quem vibram os tambores do além? Maputo: Índico.
  • Ingage-WA-Ingange, Jean Désiré (2010). The African Human Rights System: Challenges and prospects.
  • Nkrumah, Kwame (1965), Neo-colonialism: The Last Stage of Imperialism. London: Nelson.
  • Wynter, Sylvia (2015). On being Human as praxis. Duke University Press. Durham and London.

Vou desenhar para ver se entendes...

O Assapulo inaugura a secção “Vou desenhar para ver se entendes” reservada para ilustradores, desenhistas, pintores e demais criativos antirracistas, explicarem assuntos sérios por imagens que facilitem o nosso entendimento comum. Esta primeira imagem foi criada por @ilustraclementine.

*assapulo significa notícia ou informação na língua umbundu. 

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